Relevantes meios de comunicação e políticos não duvidaram em qualificar o que aconteceu dia 30 de janeiro de 2005 no Iraque como “as primeiras eleições democráticas” da sua história. A afirmação é um alarde de cinismo ou de cegueira porque ninguém, que acredite numa verdadeira democracia, pode aceitar, como tal, a farsa eleitoral organizada pelos EUA. Não o pode chamar, sem deformar a tal ponto os fundamentos da democracia que, então, pode chamar-se isso a qualquer arremedo de consulta popular, onde o que importa não é o país, mas o poder.
O Iraque, há que recordá-lo, é um país ocupado por 200 mil soldados estrangeiros e em guerra. Um Estado soberano invadido em 2003, em violação das leis mais fundamentais do Direito Internacional e onde, diariamente, são assassinados, torturados e vilipendiados centenas de cidadãos, sem que haja lei ou autoridade que zele pelos seus direitos. Um país que vê destruídas cidades, povoações e bairros pelas forças invasoras, no meio do silêncio cúmplice de tantos governos, mais preocupados em agradar à potência ocupante que em deter a destruição do Iraque e os crimes que ali se cometem diariamente.
As eleições, além disso, estavam infestadas de arbitrariedades que, não fossem os Estados Unidos o organizador – ou se o seu promotor tivesse sido um país adverso ao Ocidente – a desclassificação das mesmas teria sido generalizada. Realizaram-se, em primeiro lugar, em total ausência de liberdade, pois nenhuma pessoa honesta pode acreditar que um país agredido e ocupado pode exercer livremente o seu direito à autodeterminação. As eleições em Timor Leste realizaram-se em 2001 sob a supervisão da ONU, dois anos depois de o exército indonésio abandonar o país. Nunca ninguém pensou em realizar as eleições enquanto Timor permanecia debaixo da ocupação de tropas estrangeiras.
Em segundo lugar, não existia um recenseamento fiável, nem se tinham, minimamente, definido os votantes. Esta carência essencial permitirá aos EUA adulterar os níveis de participação e dirigir os votos para os seus candidatos protegidos, de forma que ganhe quem menos o odiar. Também não havia uma autoridade eleitoral, legítima e independente, que zelasse pela lisura do escrutínio, nem que garantisse as liberdades eleitorais mínimas, como exige o jogo democrático. Os partidos que se opõem à ocupação foram ilegalizados ou integraram-se na resistência. Desde a convocação das eleições, optaram por retirar-se 53 partidos dos 84 que se apresentaram inicialmente, pela precariedade das mesmas e ausência de garantias. A farsa era tão absurda que até podiam ter votado 150 mil israelenses de origem iraquiana.
Na conferência de Sharm el Sheij, no Egipto, a França apresentou uma proposta, não aceite, com três condições para superar o desastre no Iraque: a participação de todas as forças iraquianas, incluída a resistência em qualquer proposta de solução; passar o controlo do Iraque às Nações Unidas e fixar uma data de retirada das tropas estrangeiras. A recusa desta proposta revela a intenção de manter, sine die, a ocupação do Iraque, o que é o mesmo que dizer a de prolongar a guerra e a destruição e, naturalmente, a de manter o país dominado. Não se gastaram 300 mil milhões de dólares para devolver o Iraque aos iraquianos.
Dar por boas umas eleições realizadas em tais condições não só aumentará a confrontação no Iraque como implicará legitimar as guerras de agressão e validar os crimes internacionais. Deitaram por terra não só a Carta das Nações Unidas, como também o Tribunal Penal Internacional, pois carecerá de sentido defender uma ordem jurídica mundial e um tribunal internacional, quando basta uma farsa eleitoral para limpar os crimes mais abomináveis.
Os EUA, que inventaram a democracia das bananas no Caribe, tentam impor no Iraque uma democracia de cadáveres. Invade o país, coloca um governo títere, mata, encarcera e tortura os opositores e convoca eleições sem garantias, nas quais apenas participam os seus. Com o arremedo eleitoral, a ocupação e a guerra transformam-se em politicamente correctas e Bush poderá proclamar, sobre um país devastado, que os Estados Unidos cumpriram a sua missão civilizadora. O modelo não é novo. Na América Latina foi utilizado ao longo de décadas. E ainda se estão a contar os cadáveres.

Augusto Zamora R. é Professor de Direito Internacional Público e Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Madrid. Tradução de José Paulo Gascão.

O original encontra-se em http://www.rebelion.org/noticia.php?id=10811 .

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